Apropriação cultural, Kpop e outras shenanigans

08:00


Vamos falar de apropriação cultural



Sim, esse assunto outra vez.
Apesar do assunto vir à baila diversas vezes, lembrei-me que nunca tinha feito nenhum post relacionado com o tema. Porquê agora? Há algumas noites atrás ao deambular pelo youtube deparei-me com um verdadeiro campo de batalha na secção de comentários do novo mv do Henry, “I’m Good”. A música é lit btw, deixo-vos aqui para conferirem.


Mas o mv, enfim…Só conseguia pensar "dafuq am I watching?".

[Disclaimer]
Isto não é de forma alguma um ataque a qualquer raça, ou grupo específico mas sim uma tentativa de educar e elucidar para certas práticas.

Começando pelo início, e eu digo isto muitas vezes: uma pessoa dita “non POC*” decidir o que é ofensivo ou não para as POC é o equivalente a eu dar uma estalada a alguém e uma 3ª pessoa decidir se doí ou não.
Vivemos num mundo cada vez mais globalizado, é ridículo falar de apropriação cultural
Esta afirmação seria verdadeira se soubéssemos que todos os diferentes grupos étnicos são tratados de igual para igual.

Vamos focar-nos no caso dos artistas coreanos e da apropriação da cultura afro-americana.
Porque é que incomoda as pessoas quando os ídolos fazem dreads/rastas, tranças e por aí em diante?
Para isso temos de voltar alguns séculos atrás, na altura do estágio não remunerado e involuntário – também conhecido como escravatura - a que os povos africanos foram submetidos.
Uma das maneiras mais eficazes de exercer domínio sobre um povo é usurpando a sua identidade abolindo as suas religiões, os seus rituais, a sua cultura, a sua língua. Em suma; apagando os traços que as distinguem. Um exemplo disso foi o que aconteceu ao povo coreano durante o domínio japonês em que as pessoas eram obrigadas a usar nomes japoneses e eram detidas se apanhadas a falar ou escrever em coreano.
No caso particular dos negros, uma das formas de expressão que foi silenciada foi a forma como se penteavam e se vestiam.
A partir do momento em que eram capturados, aos escravos era rapada a cabeça, como símbolo de um novo começo.Não lhes era permitido usar penteados caracteristicamente africanos e as mulheres eram obrigadas a andar com a cabeça coberta com lenços/turbantes. E quando os senhores se aperceberam que começavam a surgir formas mais criativas de usar os turbantes, back to shaving.



Os dreadlocks, ao contrário do que muitos pensam, não são oriundos da Jamaica nem do movimento rastafári. Remontam ao Egito antigo e a Etiópia, onde eram usados como forma de homenagear as divindades. Da mesma forma, na Índia, em algumas vertentes do hinduísmo é comum o seu uso.
Os rastafáris apenas adicionaram um novo significado a este estilo: símbolo de resistência contra os escravagistas que ocupavam a ilha da Jamaica.
Durante séculos os povos africanos foram proibidos e ostracizados por praticarem a sua cultura. Sempre levados a crer que as suas crenças eram impuras, as suas línguas não civilizadas, os traços físicos exagerados e deselegantes.

Que mal tem ele usar dreads? As mulheres negras também esticam o cabelo e pintam de loiro. Isso não é apropriação?
A grande diferença é que para a maioria das pessoas ditas POC, historicamente falando, adoptar características físicas e culturais ocidentais, sempre foi uma questão de necessidade de adaptação e não de estilo. A isso chama-se assimilação cultural.
A partir do momento em que se aboliu a escravatura o discurso passou a ser “ok, vocês podem viver entre nós. Mas para a vossa existência ser validada vão ter de se vestir, comportar, falar e parecer como nós”.
Isso deu início a uma era em que as pessoas, desesperadas por de serem aceites, tentam a todo o custo encaixar no padrão exigido pelo colonizador.
Começa então a prática de se usar produtos que aclaram a pele e alisam os cabelos.

Eu própria durante 10 anos da minha vida usei, ininterruptamente produtos para alisar o cabelo. Grande parte destes produtos contêm formol entre outros químicos, tão fortes que podem causar lesões graves com o uso prolongado (queimaduras, alopecia etc) .

Esta mentalidade e estas práticas estão tão enraizadas que até hoje se mantém e são glorificadas entre os africanos.

Recentemente temos tipo o crescimento do movimento “Natural Hair”. É um movimento que tem como objectivo consciencializar as pessoas para que passem a aceitar a sua tez natural e a textura do seu cabelo. Fazendo-as perceber que nada há de errado com a forma como viemos ao mundo e que não devemos sacrificar a nossa saúde física e mental a tentar seguir padrões de beleza que não encaixam com a nossa realidade.
Há quem considere o movimento agressivo, mas são quase 500 anos de manipulação e lavagem cerebral a ser combatidos.
E, ao contrário do que a maioria pensa, ser pro natural não significa ser anti liso. Significa que somos pró escolha. Ser pró natural é poder usar o cabelo que se quer sem ser por imposição do que a sociedade acha que é aceitável.
Engane-se quem pensa que o processo de aceitação é o final feliz desta história. Ele é apenas mais um capítulo numa saga que parece não ter fim. Pois a partir do momento que se faz a escolha de não aderir aos padrões da sociedade ocidental, automaticamente estamos a pôr-nos a jeito para novas formas de discriminação.

Sim meus caros, o racismo está vivo e de boa saúde, infelizmente. A única coisa que mudou é que agora, é tido como politicamente incorrecto. Hoje em dia já não se grita (com tanta frequência) às pessoas “volta p'ra tua terra” mas sonegam-se oportunidades de emprego, expulsam-se pessoas das salas de aulas por não obedecerem o "código de imagem", fazem-se juízos de valor com base no facto de se usar tranças, dreads; por se usar trajes típicos, etc. Inúmeros são os relatos de pessoas que sofrem bullying no local de trabalho por se recusarem a alisar o cabelo, por usarem tranças, por parecerem demasiado “étnicas”.

Tendo em conta tudo isso - anos de opressão, e o preço elevado que se paga por tomar a decisão de não seguir o status quo - imaginem o espanto das pessoas quando vêm os grupos que as ostracizam, discriminam e diminuem a fazerem exatamente as mesmas coisas pelas quais as condenam.

O corpo da mulher negra foi sempre altamente sensualizado, satirizado e desrespeitado, porém nos dias que correm, preenchimentos labiais, cirurgias de implantes mamário e de glúteos são das mais praticadas.




Existem várias formas de se mostrar apreço por uma cultura. Aproveitar-se de elementos das culturas alheias – antes tidas como não civilizadas e incorrectas – para fazer dinheiro fácil ou como acessórios de moda sem creditar os donos, não é uma delas.
O caso dos rappers e ídolos coreanos é ainda mais gritante, uma vez que o Kpop e Khip hop são altamente influenciados pela cultura afro-americana. No entanto cada dia que passa há um novo caso de blackface, ídolos apanhados a dizer a infamous "n-word" ou a fazerem literalmente cosplay de negros porque é “cool”.

No Shim shim ta pa Rap Monster descreve a habilidade de falar "à preto" como um talento

Realmente acredito que a maior parte dos coreanos continua ignorante em relação a estes temas uma vez que não são tão abertos as culturas exteriores. Mas no caso dos ídolos, que tem tantos fãs internacionais e são directamente influenciados pela cultura de origem negra, qual é a desculpa? Se as pessoas têm tempo e disponibilidade para aprender a fazer o dab, a falar à preto e se toda a vida ouviram hip hop e foram inspirados por ele, como é possível que lhes tenha passado ao lado algo que é um tema recorrente na música de artistas como o Tupac, BIG, Wu Tang Clan, Jay z entre outros? Não seria isso interesse selectivo?
Eu entendo que hip hop engloba muita coisa, não é só música. Mas há exemplos, na própria indústria coreana - Epik High, Verbal Jint, Beenzino - que são grandes rappers mas não se comprometem. Até porque muitas vezes os rappers coreanos preferem replicar estereótipos negativos.
Mino e Bobby no skit em que imitam hood gangsters


Epik High

Um lugar onde todos os anos se juntam centenas de pessoas que praticam apropriação cultural sem se aperceber ou percebendo mas sem querer saber, é o festival de Coachella.
É comum durante o festival ver pessoas vestidas de forma “étnica”: bindis, tranças, dashikis, ornamentos de penas.



 


Tudo símbolos importantes de culturas não europeias que são usados como acessórios de moda, sem qualquer respeito pelo seu significado.
Então vem o pessoal do:

Não. Usar um elemento cultural de valor simbólico como acessório de moda não é uma forma de honrar a cultura dos outros. Pelo contrário, a partir do momento em que se faz isso, remove-se e diminui-se a importância desse elemento.
Em conversa com uma amiga hindu, um dia perguntei-lhe porque não usava mais punjabis e bindis no dia-a-dia. A sua resposta foi “Porque não estou para ouvir chamarem-me monhe e chicken thikka massala”.
Porque é que o uso de bindi é bonito em Coachella, no carnaval e no verão mas no corpo da minha amiga é usado como uma arma para a atacar?

Concluindo: é apropriação sim quando todos estes elementos, traços físicos, música, gastronomia só parecem ganhar valor e só são celebrados a partir do momento em que saem dos grupos a que pertencem e são usados por terceiros.


Eu sei que isto é um assunto que ainda dá muito pano para mangas e que tem muitas "grey areas", mas há um estigma e a ideia de que as pessoas que se queixam de apropriação cultural gostam de se fazer de vítimas e têm prazer em apontar constantemente o dedo aos outros.
Só vos peço que, da próxima vez que se depararem com uma discussão dessas, antes de acusarem as pessoas de serem exageradas e de se fazerem de vítimas se coloquem no lugar delas.
Vocês não imaginam como é cansativo ter de afirmar-se/defender-se constantemente, tentar educar os outros e tentar fazer com que as pessoas entendam. É psicologicamente desgastante. Ter de lidar com comentários condescendentes durante o processo é ainda menos agradável
Basicamente nós temos duas opções: parar e deixar as coisas como estão, ou continuar a tentar mudar a mentalidade das pessoas para que quem venha a seguir a nós tenha menos um stress com que se preocupar.

*POC - Person of Color

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